sábado, agosto 20, 2011

Pernoitas em mim


Pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... 
amas 
ou finges morrer


pressinto o aroma luminoso dos fogos 
escuto o rumor da terra molhada 
a fala queimada das estrelas 


é noite ainda 
o corpo ausente instala-se vagarosamente 
envelheço com a nómada solidão das aves


já não possuo a brancura oculta das palavras 
e nenhum lume irrompe para beberes





Al Berto in Rumor dos Fogos

quinta-feira, agosto 18, 2011

"Há ilusões que se parecem com a luz do dia; quando acabam, tudo com elas desapareceu."


Marguerite Duras

sexta-feira, julho 08, 2011

A Festa do Silêncio

Escuto na palavra a festa do silêncio. 
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se. 
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas. 
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas. 
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma. 

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia, 
o ar prolonga. A brancura é o caminho. 
Surpresa e não surpresa: a simples respiração. 
Relações, variações, nada mais. Nada se cria. 
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça. 

Nada é inacessível no silêncio ou no poema. 
É aqui a abóbada transparente, o vento principia. 
No centro do dia há uma fonte de água clara. 
Se digo árvore a árvore em mim respira. 
Vivo na delícia nua da inocência aberta. 

António Ramos Rosa, in "Volante Verde"

terça-feira, fevereiro 22, 2011

Por ti

Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa do jogo, 

estendo as peças sobre o tabuleiro, 
disponho os lugares
necessários para que tudo comece: 

as cadeiras
uma em frente da outra, 

embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, 

só os olhos transportam, talvez, 
uma hipótese de entendimento. 
É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.

Nuno Júdice

domingo, janeiro 09, 2011

Metade

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher  que amo seja para sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso
mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste,
e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflicta em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

 Oswaldo Montenegro

terça-feira, dezembro 07, 2010

Cumplices


A noite vem às vezes tão perdida
E quase nada parece bater certo
Há qualquer coisa em nós inquieta e ferida
E tudo o que era fundo fica perto
Nem sempre o chão da alma é seguro
Nem sempre o tempo cura qualquer dor
E o sabor a fim do mar que vem do escuro
É tanta vezes o que resta, do calor
Se eu fosse a tua pele
Se tu fosses o meu caminho
Se nenhum de nós se sentisse nunca sozinho
Trocamos as palavras mais escondidas
Que só a noite arranca sem doer
Seremos cúmplices o resto da vida
Ou talvez só ate amanhecer
Fica tão fácil entregar a alma
A quem nos traga um sopro do deserto
Olhar onde a distância nunca acalma
Esperando o que vier de peito aberto
Se eu fosse a tua pele
Se tu fosses o meu caminho
Se nenhum de nós se sentisse nunca sozinho
Mafalda Veiga

sexta-feira, novembro 12, 2010

Desfolhada




Corpo de linho 
lábios de mosto 
meu corpo lindo 
meu fogo posto. 

Eira de milho 

luar de Agosto 
quem faz um filho 
fá-lo por gosto. 


É milho-rei 
milho vermelho 
cravo de carne 
bago de amor 
filho de um rei 
que sendo velho 
volta a nascer 
quando há calor. 

Minha palavra dita à luz do sol nascente 
meu madrigal de madrugada 
amor amor amor amor amor presente 
em cada espiga desfolhada. 

Minha raiz de pinho verde 
meu céu azul tocando a serra 
oh minha água e minha sede 
oh mar ao sul da minha terra. 

É trigo loiro 
é além tejo 
o meu país 
neste momento 
o sol o queima 
o vento o beija 
seara louca em movimento. 

Minha palavra dita à luz do sol nascente 
meu madrigal de madrugada 
amor amor amor amor amor presente 
em cada espiga desfolhada. 

Olhos de amêndoa 
cisterna escura 
onde se alpendra 
a desventura. 
Moira escondida 
moira encantada 
lenda perdida 
lenda encontrada. 
Oh minha terra 
minha aventura 
casca de noz 
desamparada. 
Oh minha terra 
minha lonjura 
por mim perdida 
por mim achada. 



(Nuno Nazareth Fernandes 
Ary dos Santos)